terça-feira, 10 de maio de 2011


Era fim de primavera. Chovia pouco, mas fazia frio. Mesmo a garoa sendo mínima a noite não estava muito proporcional a um passeio agradável. As ruas já tinham cheiro de outono, que às vezes parecia ser cheiro de estação nenhuma. E por essas ruas de cheiro algum, ou talvez perfume indefinido, aquela menina caminhava. Andava, olhava para os lados, retardava o passo, parava, assim por diante tomava rumo outra vez. Usava calça justa, blusa de mangas comprida um pouco folgada e coturno. Nas unhas um esmalte vermelho desbotado já descascado. O rímel de ontem ainda nos olhos e na sua expressão uma cara ressacada. Parecia atordoada, alienada, anormal. Mas, isso só na aparência, por dentro ela estava calma e desesperadamente tranquila. Trazia nessa tranquilidade um rosto inexpressivo. Uma aparência sem sentimentos. Uma afeição ríspida, sem compaixão. A impressão que ela dá é que o amor é um sentimento incomum, que não o possui e desconhece os poderes que tal emoção pode causar...
Às vezes me enxergo nessa menina. Sinto-me tão ela tanto quanto sou eu. Afinal, há dias em que não queremos ter sentimento. Há dias em que ficamos imunes à vulnerabilidade da paixão. Dias que não queremos ter memória, nem sequer um pensamento, por mínimo e inútil que seja. Há dias em que não queremos acordar. Há dias em que não queremos dormir. Há dias em que palavras não bastam, carinhos não satisfatórios, nem suprem carência. Há dias em que queremos esvaziar o coração. Há dias em que nos sentimos perdidos, descridos, que não queríamos ter nascido, ou pelos menos não na nossa família. A inveja é doce, a família do vizinho é sempre mais divertida e como dizem por aí: a sua grama é mais verde. Há dias em que não queremos ouvir nenhuma voz, mas o grito do silêncio assusta. Há dias em que somos mais falhos que o normal e nos sentimos menos humano por isso. Há dias atravessados em que se quer morrer, que o oposto é sempre bem-vindo. Que as coisas pelo avesso são mais coerentes. Há dias em que o “não-certo” jamais intimida falta de vontade. Dias e dias em que seguimos errados e errantes, mesmo sem errar.
Ismara Alice

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